terça-feira, 17 de julho de 2012

Dalí-Pererê


          Dalí é o Pererê. Os Sacis dali de Itajubá, em Minas Gerais, também são do tipo Pererê.  Há 3 tipos de Saci. O Pererê,  que é pretinho, o Trique, moreno e mais brincalhão de todos e o Saçurá, que tem olhos vermelhos, sabe-se lá porque. Suas primeiras aparições foram registradas na região sul do Brasil por volta do século XVIII. De lá prá cá foram perseguidos e algumas vezes esquecidos. Quando estavam quase desaparecendo, alguns fugiram para o sudeste e para o norte do país. Perto de sua extinção, 7 sobreviventes, 5 de perna esquerda e 2 de perna direita, migraram para regiões próximas da Serra da Mantiqueira, no início do século passado.
Por lá ficaram um bom tempo até conseguirem formar uma tribo mais robusta, em maior número, quero dizer.

          Os acasalamentos são muito frequentes, sempre tem Saci trepando. Na época não era diferente, sendo a posição preferencial a chamada “de três”. Uma adaptação subtrativa da posição dos humanos, por questões anatômicas óbvias. Mas apesar da libido invejável, Sacis são Sacis. E as sacizices são muito presentes durante o ato sexual também. Isso inclui coito interrompido, cálculos de períodos férteis, camisinha com tripa de cabra, sexo entre mesmo gênero, sacanagem sem penetração e muitos, muitos outros métodos de contracepção imaginados e não imaginados pelos humanos.
Os Sacis costumam ter esse comportamento para ter mais tempo de traquinagens sem precisar se preocuparem com seus mini sacizinhos. Principalmente entre as fêmeas, que fatalmente ficam mais tempo com a prole e perdem a oportunidade de aprontarem dentro da selva, não só do ponto de vista sexual. Isso atrasou, em muito, essa nova leva que acabava de chegar aos recônditos do sul de Minas.

          Mas após alguns anos dando nó em rabos de cavalos de tropeiros, dando nó em assunto alheio, mudando o jeito da mata ver a mata, fumando fumo de rolo canhamado, deixando porteiras abertas para os animais fugirem, assoviando e assustando os trilheiros aventureiros, acasalando de três, e em três, essa leva de Sacis Pererês cresceu. E cresceu muito. Alguns relatos dos contadores de Delfim Moreira é que fosse da ordem de 250 nessa época. Isso permitiu um raio de ação bem maior, tendo alguns mais novos se aproximado do Juru, já nas imediações de Itajubá. Assim um dia que chovia muito, Tião Guimarães, um caboclo de Itajubá, quando saía para fechar a porteira do curral, que os Sacis tinham aberto novamente, se deparou com 3 redemoinhos de vento. Já instruído na arte da caça de Sacis, Tião pegou uma peneira que usava para separar a farinha de milho, jogou nos redemoinhos e pegou os três de uma só vez. Assim que prendeu os três em uma caixa de mercado, sua primeira vontade foi de castigá-los. Pensava em fazer justiça por todas as vezes que teve que desfazer os nós do rabo dos bichos, que sua mulher teve que cozinhar novamente após o almoço queimar devido a distração com os assovios dos Sacis, que teve de procurar a enxada escondida de manhãzinha, quando saía para trabalhar, que teve de encontrar as ratoeiras todas desarmadas (e o queijo comido), enfim, todas as artimanhas típicas de Saci. Mas assim que viu as carinhas assustadas, percebeu que não sabia nada de Sacis. Eram moleques. Não queriam prejudicar ninguém. Só queriam salvar o pobre Tião, e sua família, da monotonia do dia a dia. E claro, gostavam também de dar boas risadas com as situações que aqueles “remédios” provocavam. Era a folia. O carnaval permanente dos Sacis. Culpou-se, compadeceu-se com as pobres criaturinhas e decidiu dar alguma coisa para eles comerem, um resto de pão, a canjiquinha do dia anterior e até uma goiabada que Dona Lourdes teve de fazer duas vezes quando os Sacis fizeram-na queimar a primeira. E em seguida liberou os Sacis. Mas estes, muito atentos à mudança de comportamento do Tião não saíram correndo, pelo contrário, ficaram por ali, pularam, riram, deixaram ser vistos e tocados, fumaram, cochicharam entre si, gargalhando e mostrando que não tinham medo. No dia seguinte voltaram, comeram de novo, brincaram de novo, deram mais alguns nós e foram embora. Isso se repetiu mais e mais vezes. Tião e Lourdinha adoravam os Sacis, mesmo tendo que dar um corre neles às vezes. Mas depois de alguns meses, resolveram construir um lugar coberto, passaram a tirar carrapicho dos gorros, limparam os cachimbos, deram algumas ervas lumbringueiras e perceberam que suas vidas eram muito melhor depois que adotaram aqueles 3 Sacis. Nascia assim o primeiro criadouro e observatório de Sacis do mundo, debaixo das quaresmeiras de Itajubá-MG.

          Os atuais observadores contam que hoje em dia há mais de 8 criadouros de Saci só na região da Grande Itajubá, que inclui Maria da Fé, Piranguinho, Delfim Moreira,  Pirangussu, Brazópolis e algumas outras pequenas cidades-satélites, como Pouso Alegre e Marmelópolis. O fascínio realmente é muito grande pelos Sacis e ocasionalmente pode-se ver um deles, perdido pela estrada, assustando transeuntes, ou fazendo batalha de mamonas.

          Mesmo hoje, com todo o avanço neurolinguístico que alcançamos, pouquíssima gente entende o que os Sacis falam. Acredita-se que a origem do idioma é um dialeto morto do Yorubá, trazido pelos escravos alguns séculos atrás. Todas as tentativas de tradução fatalmente terminam em textos de interpretação dúbia, quando consegue-se construir frases, o que é, geralmente, incomum. A riqueza de inversão, palavras ao contrário, sintaxe mutante e arcaica ao mesmo tempo, fusão de palavras, neologismos, sotaques e expressões emboladas acabam  levando a um contexto em decrescendo, como um fim de música com diminuição de volume. Os poucos observadores, que se aproximaram de uma compreensão da língua dos Sacis, dizem que têm a impressão de ouvir uma frase derretendo.
Há um estudo em andamento, em Botucatu, no interior de São Paulo, que tem um dos maiores observatórios de hoje, que parece mostrar que a fala dos Sacis não é utilizada para a comunicação entre eles. Serviria apenas como planejamento de sonhos, baseado no que eles estão vivendo naquele momento. Algo como um registro instantâneo e constante de tudo que está sendo vivido pelo Saci naquele momento, como se fosse um digitador jurídico, ou da polícia, quando estamos em depoimento. Mas para o Saci servia para que aumentasse a possibilidade dele viver verdadeiramente aqueles instantes, onde mais lhe interessa, nos sonhos. Saci vive ao contrário, sonha ao contrário e talvez por isso, falem ao contrário.

          Para Miguel Guimarães, tataraneto de Tião, a única pessoa que se aproximou de algum grau de compreensão das ideias dos Sacis foi um pintor esquisito, de bigodes estranhos e invertidos. Miguel conta que a prima de segundo grau de seu tio Tião Guimarães, conhecida como Tarsila do Amaral, em uma viagem a Paris, teria conhecido o tal pintor em Montmartre, dentro do círculo de amigos boêmios que frequentavam. Ao contar para seu colega esquizoide sobre a criação de Sacis que seu primo tinha, o pintor em poucos dias tomou um navio em Le Havre, na França e partiu para o sul das Gerais.

          Esse artista falava castelhano e começava todas as suas frases com uma interrogação de cabeça para baixo, o que também dispertou uma curiosidade imediata dos Sacis por ele, além dos bigodes, claro. Eles passavam horas e horas juntos, aquele artista magrelo, esguio, com o olhar atento em todos vinte e oito Sacis que o cercavam. Sempre de prancheta de desenho na mão. Mas ao contrário do que muitos pensariam, ele não desenhava, não pintava. A atenção era estritamente na linguagem dos negrinhos pernetas. Tornou-se uma obsessão para o artista esse acesso bizarro que os Sacis faziam aos seus sonhos. Aos poucos sua obstinação ia sendo recompensada com vestígios cifrados dessa linguagem nova. Dia após dia Salvador Dalí ganhava informação, paixão e descontrole sobre si mesmo e sobre aquelas imagens derretidas, invertidas, lógicas e viscerais que se formavam e davam um sentido único e maravilhoso para tudo. Viver, a partir dali, seria reproduzir e perpetuar tudo o que ele “ouviu” dos Sacis. Salvador Dalí é um Saci-Pererê.

Eric Grieger Banholzer 17/07/2012

3 comentários:

  1. Acho, sinceramente, que seu blog vai virar um livro-saci. Saci é o início da saciedade. Como não há meios de satisfação dignos neste mundo, há que se escrever, pintar, desenhar pernas, enfim, sacizar-se.

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  2. Concordo com o comentário do sr. Renato Silveira: seus "causos" sobre sacís, serão um delicioso livro! Blog, livro-blog.... Tanto faz.A verdade é que se termina sedenta por ler mais e mais.... A espera....
    Regina Serrano.

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  3. Fico a espera de mais "causos"! O prazer de ler sobre os sacís....
    Alimente-nos com outros relatos. Estamos famintos....

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